sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Insistência na cegueira.



É pouco provável que exista no mundo algum outro país em que juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores e integrantes do  Poder Judiciário em geral apareçam tanto na imprensa como acontece hoje no Brasil.
Bom sinal com certeza não é, sobretudo quando se considera o tipo de noticiário em que costumam aparecer. Ora é porque estão em greve, ou ameaçando entrar em greve, por aumento de salário.
Ora é  porque estão processando o governo, em ações que serão julgadas por colegas nas instâncias acima deles, para receber equiparações, compensações e outros benefícios em dinheiro.
Vivem, através das suas associações de classe, publicando manifestos a favor de si próprios. Vão a resorts de luxo, com despesas pagas por gente de quem deveriam estar longe, e ficam revoltados quando a imprensa publica informações sobre isso. Com frequência inquietante, e pelo país inteiro, saem notícias sobre magistrados investigados ou processados por ofensas ao Código Penal.
Episódios de conduta incompatível com a função judicial tornam-se cada vez mais comuns.
Não causaram nenhuma estranheza, por exemplo, as informações, reforçadas por fotos, que a Folha de S.Paulo publicou há pouco sobre a  campanha feita pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ari Pargendler, em favor de sua cunhada Suzana Camargo, candidata a uma vaga na corte presidida por ele.
O mesmo aconteceu com a notícia, divulgada no começo de dezembro, revelando que dezessete desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo estão sendo investigados pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça sob a acusação de receber  pagamentos ilegais; há investigações, também, sobre magistrados paulistas suspeitos de ter patrimônio incompatível com a sua renda.
Brasília, então, é um capítulo à parte. Como descreveu recentemente uma reportagem de VEJA, juízes das mais altas instâncias do país vivem em estado de aberta promiscuidade com advogados dos grandes escritórios do Rio de Janeiro, de São Paulo e de lá mesmo, políticos envolvidos em processos de corrupção e grandes empresários enrolados com a Justiça — para não falar de réus com processos em andamento.
Cruzam-se em festas de aniversário, casamentos, feijoadas, torneios de golfe.
Em vez de esconderem, advogados exibem em público sua amizade com magistrados, deixando correr a impressão de que podem ganhar qualquer causa; seus honorários não sofrem nada com isso.
Todo esse caldo vem sendo consideravelmente engrossado, de uns tempos para cá, pela ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça e atual titular da Corregedoria Nacional de Justiça.
Essa ministra tem um problema sério: acredita que deve cumprir, realmente, suas obrigações de corregedora, segundo determina a lei. Solicita investigações. Ouve denúncias. Tenta apurar delitos, violações éticas e outras malfeitorias  atribuídas a autoridades judiciárias.
É apenas o seu dever — mas por fazer o que manda a lei a ministra Eliana está com índices de popularidade  próximos a zero entre os seus colegas.
Em nada a ajudam, é claro, sua inclinação a falar exatamente o que pensa e sua pouca paciência para adoçar o que fala. Recentemente, por exemplo, disse que o Judiciário sofre de “gravíssimos problemas” causados pela “infiltração de bandidos escondidos atrás da toga”, referindo-se ao fato notório de que a todo momento, e em todo o Brasil, vêm a público denúncias de corrupção entre juízes, desembargadores ou ministros dos tribunais superiores.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, declarou-se “indignado” — não com os bandidos, mas com Eliana. Disse que suas palavras eram uma “ameaça à democracia”, e assegurou que em quarenta anos de carreira nunca tinha visto “coisa tão grave”.
O ministro poderia ter dito que em seus quarenta anos de carreira a situação do Judiciário brasileiro nunca foi tão calamitosa como hoje — e que, no caso, o que realmente ameaça a democracia é a impunidade para juízes criminosos.
Mas é claro que não disse. Como acontece com tantos  outros magistrados hoje em dia, ele acredita que seus deveres de solidariedade com a categoria vêm antes de seus deveres como juiz. É uma pena que esse apoio não se estenda aos milhares de juízes honestos que existem no Brasil — e que podem perder a vida por causa de sua integridade,  como ocorreu com a juíza fluminense Patricia Acioli, assassinada com 21 tiros em agosto último por aplicar a lei contra o crime organizado.
Nenhum ministro do STF se deu ao incômodo de comparecer ao seu enterro.

J. R. Guzzo - Veja, 22/12/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário