domingo, 22 de agosto de 2010

Olhar de fidelidade


"Desentendo as panelas.
Misterioso o sumiço de suas tampas...Somem sem bilhete de suicida. Escapam de seus pares. Desertam do exército.
...
Ainda deveria ser feito um estudo da falta de fidelidade das panelas. Por que elas não são monogâmicas?
Diferente do caderno de capa dura, pautado pela lealdade. Lembro das aulas em que tinha que arrancar a folha para repassar ao professor no final do período...
Triste o sacrifício, o capricho violado, o esforço de pontilhar o corte, reduzir o estrago usando régua ou um livro como apoio. Eram folhas duplas, rasgar uma significava comprometer a costura, deixar solta a folha no outro extremo, afrouxar a cintura do conjunto, corromper o elástico.
...
Minha memória não é a de um caderno espiral, para distribuir e censurar confissões, mentir sua extensão e abreviar o conteúdo. É de um caderno de capa dura. Não consigo apagar uma lembrança, mesmo que seja dolorida ou humilhante ou os dois. Muito menos alterar seu número de páginas conforme a necessidade da relação. Não sou de riscar o que aconteceu para parecer mais maduro, ou eliminar as contradições e simular coerência. Inclino-me a conviver com as rasuras e insatisfações... Alterar é disfarçar a carência. Alterar é fingir o que não foi vivido, antecipar o que não era hora. Falsificar-se compulsivamente.
Não irei me vingar com as cinzas, arrancar as folhas que não combinam comigo, ou que me provocaram decepções.
Não serei visto queimando fotografias, cartas e paixões numa lata de lixo, apenas porque não me servem mais. O que namorei vai enamorar a vida inteira. Estará lá numa página definida, permanente, com a letra segurando as linhas.
Todos os meus erros são esperançosos pela releitura."
(F. Carpinejar - Mulher Perdigueira)

Um comentário:

  1. Um tempo atrás procurei o livro aqui em Floripa e não achei. Vou procurar novamente. Trechos maravilhosos, amiga! beijos!!

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