domingo, 22 de agosto de 2010

Olhar para pequenas e necessárias gentilezas


"Comprei água numa tenda em Areia Branca, no Rio Grande do Norte. Praia quase deserta não fossem os cachorros confundindo conchas com ossos.
Três amigos tomavam cerveja e gravavam depoimento nem celular. Um deles, de boné vermelho, já tinha errado duas gravações.
Deveria ser um recado para uma ex-namorada prestes a se casar.
Resmungava: "Como vou desejar que ela seja feliz? Como?"  
Com facilidade de prosa, os dois escudeiros apresentavam opções de discurso. Gesticulavam, entusiasmavam que seria rápido, empurravam seus ombros como jangadas. Que ele falasse o que sentia.
- O que sinto? Não sei o que sinto, estou pensando agora no que sinto e não estou gostando nenhum pouco.
"Estela, eu queria que você encontrasse no amor o que não encontrei..."
E parou de novo, engasgou, botou a mão na frente da câmera.
- Não dá para usar o primeiro?
- Não, você nem completou uma frase.
- Meu Deus.
- Qual é o problema?
- Quando é palavra filmada, eu penso na vírgula, onde colocar a vírgula. Não consigo colocar a vírgula.
Ele se mortificava pela demora, pelo excesso que é o mesmo que uma ausência.
- Aí me achega uma preguiça do que não vivi.
Naquela hora, as pontas das águas não se soltaram mais. Alcancei o que queria e o que não queria confessar. Somos preguiçosos no elogio e inventivos para as críticas.
Para destruir, montamos edsmontamos o dicionário com afinco, puxamos as piores fragilidades para sangrar. Criamos até neologismos. No momento da briga, ninguém segura o verbo. Não há raivoso burro. Não há raivos com língua presa. Não há raivoso gago. Um Padre Antônio Vieira acorda na acusação apontando os dedos ao destino.
No momento da paz, o verbo é travado. Parece que não precisamos fazer mais nada, a não ser recorrer às exclamações.
Observamos nossa namorada e nos tranquilizamos com "bonita", "linda", "maravilhosa", "incrível", "fabulosa". Ela vai se tornando igual às outras. Não criamos gentilezas novas, não nos esforçamos para a homenagem. Não duvidamos do que sopramos para fora.
Se ela derruba os livros no chão, apontaremos que ela é atrapalhada. Por que não dizer que ela transborda?
Se ela esquece onde colocou a chave, lembraremos que nunca presta atenção. Por que não dizer que você é um portão da infância; é só empurrar?
Se ela acorda ranzinza, não condene. Por que não dizer que a ironia é a noite do humor?
Por quê?
Para quando ela estiver casando com outro, não lembrar mais da vírgula. A vírgula, que separou o sujeito do predicado."
(F. Carpinejar - Mulher Perdigueira)  

4 comentários:

  1. Pelo jeito o livro fez sucesso aos teus olhos.

    Acredita que o meu está ali...ignorado. Estou me afundando em Zaffaroni e afins...

    Bjs no core

    PS: Até hj não vejo a imagem aqui (hehehe)

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  2. Mi, alterno leituras necessárias com leituras para alma.
    Carpinejar é tudo de bom.
    MORRI com vc ainda não vendo nada!!!!hahaha

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  3. Somos preguiçosos no elogio e inventivos para as críticas.

    Precisamos perder para valorizar!? afff

    Carpinejar é o máximo!!!

    beijocas e boa semaninha amore :)

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  4. Infelizmente, só depois que perdemos é que mtos veem o que foi perdido.
    E a fila anda, né Ju? rs
    Bjos meu amor e uma semana linda pra ti :)

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