terça-feira, 6 de abril de 2010

Prisão em Flagrante e os Direitos Fundamentais do Imputado.

Segue o artigo do meu querido amigo Cleopas.

A PRISÃO EM FLAGRANTE NO PROJETO DE REFORMA TOTAL DO CPP: O QUE MUDA E O QUE AINDA PODERIA MUDAR.

Cleopas Isaías Santos
Delegado de Polícia Civil/MA
Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS, Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra e em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá/RJ
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faculdade São Luís e na Academia Integrada de Segurança Pública do Estado do MA


Introdução

O PLS 156/09, elaborado por uma Comissão de Juristas, sob a presidência do Ministro Hamilton Carvalhido, com o fim de realizar a tão desejada reforma total do CPP, reservou, com acerto, um livro próprio (Livro III), com mais de 100 (cem) artigos (art. 513 a art. 626), para tratar das medidas cautelares, provocando várias alterações nas já existentes e trazendo novas previsões, entre as quais a referência expressa ao princípio da tipicidade das medidas cautelares (art. 514), cujas principais conseqüências são a inexistência das "medidas cautelares inominadas" e do assim chamado "poder geral de cautela" do juiz, como, aliás, já reivindicava a melhor doutrina pátria (1).
Nesta oportunidade, entretanto, serão analisadas sumariamente apenas as principais mudanças introduzidas pelo PLS 156/09 na prisão em flagrante, a qual, inobstante sua natureza de medida pré-cautelar, foi tratada, tal como a preventiva e a temporária, dentro do referido Livro III (Das Medidas Cautelares), mais especificamente nos art. 537 ao art. 543, inserida, portanto, no capítulo da prisão provisória (Capítulo I); e, ao final, serão propostas alterações no PLS 156/09, referentes à mesma matéria.

Principais Mudanças

A primeira diz respeito à regulamentação, nos parágrafos do art. 525, do emprego de algema e de força, no momento da prisão, matéria que já se encontra inclusive sumulada (Súmula Vinculante nº 11), mas que está na pauta da vez, principalmente pelas controvérsias e complexidade que a mesma envolve. O §1º do referido artigo assevera que a utilização de algemas constitui medida excepcional e que se justifica somente em casos de resistência à prisão, fundado receio de fuga ou para preservar a integridade física do executor, do preso ou de terceiro. Ou seja, tanto o emprego de força, previsto no caput do art. 525, como a utilização de algemas, justificam-se pelos mesmos critérios, até porque o uso de algemas já se constitui em emprego de força. Por sua vez, o § 2º estabelece os casos em que é expressamente vedado o emprego de algemas: a) como forma de castigo ou sanção disciplinar; b) por tempo excessivo (sem dispor, entretanto, o que constitui excesso nesta hipótese); c) quando o acusado ou o investigado se apresentar, de forma espontânea, à autoridade policial ou judiciária. Por fim, o §3º indica a necessidade de registro do uso força e/ou algemas, quando seu emprego se fizer necessário, determinando, ainda, a indicação de testemunhas na lavratura do que deve ser uma espécie de termo, aqui chamado de "termo de uso de força" e "termo de uso de algemas".
O PLS 156/09 (art. 530) impõe à autoridade responsável pela custódia do preso (no caso da prisão em flagrante, o delegado de polícia), a obrigatoriedade de encaminhá-lo ao órgão competente, para que seja submetido a exame de corpo de delito, quando o mesmo apresentar lesões corporais ou estado de saúde debilitado.
Outra alteração refere-se ao estado flagrancial. Segundo o art. 538 do Projeto, considera-se em flagrante delito quem "está cometendo a infração penal" (inc. I) ou quem "é perseguido ou encontrado, logo após, pela autoridade, pela vítima ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infração" (inc. II). Ou seja, as hipóteses previstas atualmente nos incs. II, III e IV do art. 302 do CPP, foram reunidas em um só inciso (II) no Projeto. Embora a possibilidade de considerar-se em flagrante delito aquele que acaba de cometer uma infração penal (inc. II do art. 302 do CPP) não esteja expressa na nova redação, parece clarividente que ela está subsumida no caso em que alguém é encontrado, logo após o cometimento de um crime. Do contrário, estar-se-ia admitindo a possibilidade de prender em flagrante alguém que fugiu, após o cometimento de um delito, mas que foi perseguido, e a impossibilidade de prender aquele que foi pego no instante em que acabara de consumar uma conduta delitiva. Ilógico e intolerável!
O art. 539 do PLS 156/09, por sua vez, reconhece expressamente, no corpo do futuro Código, a nulidade do flagrante preparado pela polícia, quando seja razoável supor que a ação típica só se deu em razão daquela preparação. Transformando-se em lei, estar-se-á diante da codificação do conteúdo da Súmula 145 do STF, que versa sobre o chamado erro por obra de agente provocador. O parágrafo único do mesmo dispositivo refere-se a uma exceção à regra do caput, quando se tratar de flagrante postergado ou diferido. Contudo, esta exceção é apenas aparente, parecendo muito mais um equívoco, vez que se trata de hipótese legal e absolutamente diversa da estampada no caput.
Certamente uma das maiores e mais eficazes novidades, em matéria de prisão, trazidas pelo Projeto (§ 6º do art. 540), em completa harmonia e coerência com a proteção dos direitos fundamentais, é a possibilidade da autoridade policial deixar de formalizar a prisão em flagrante, em despacho fundamentado, quando vislumbrar qualquer causa justificante. A Comissão, acertadamente, reconhece que o delegado de polícia, assim como o membro do Ministério Público e o juiz, tem formação jurídica e plena capacidade de avaliar a existência dessas situações. Nunca foi razoável o argumento daqueles que defendiam que a autoridade policial só deveria fazer o juízo de tipicidade, devendo, pois, prender em flagrante mesmo quando estivesse presente uma causa excludente da ilicitude. Além disso, se a presença de alguma dessas causas era suficiente para a não-propositura da ação penal (por falta de justa causa), ou para o seu não recebimento pelo juiz, ou ainda, para a absolvição sumária do réu, também não era justificável que houvesse a prisão em flagrante. Portanto, considera-se positiva a mudança. Isso não impede, contudo, que o delegado de polícia tome todas as providências necessárias à investigação do fato, como o próprio § 6º dispõe.
Outro ponto positivo na reforma é a previsão (art. 543) das medidas a serem tomadas pelo juiz das garantias (2) (art. 15, II do PL 156/09), após o recebimento do auto de prisão em flagrante, quais sejam: a) relaxamento da prisão, quando ilegal, a toda evidência; b) decretação (o Projeto fala em converter, mas no fim, dá no mesmo, pois exige fundamentação) da prisão preventiva, se estiverem presentes seus pressupostos. Com este dispositivo, fica claro que ninguém mais poderá ficar preso em flagrante, por
mais tempo do que o estritamente necessário para o conhecimento do juiz, que velará por sua legalidade, como já advogava a boa doutrina (3); c) arbitramento de fiança ou aplicação de outras medidas cautelares mais adequadas às circunstâncias do caso; d) concessão de liberdade provisória, quando, embora legal a prisão, não seja o caso da decretação de prisão preventiva ou aplicação de outra medida cautelar.

O que ainda pode mudar

A primeira mudança que pode ser feita é a extensão, à autoridade policial, da possibilidade de aplicação de outras medidas cautelares mais adequadas às circunstâncias do caso, em substituição à prisão em flagrante. Essa análise seria feita antes da lavratura do respectivo auto, em despacho fundamentado, com imediata comunicação ao juiz das garantias, para as providências cabíveis. Não fazê-lo parece um equívoco, pelas razões a seguir expostas.
Por uma questão de lógica, uma prisão não pode ser necessária e adequada para um aplicador do direito (autoridade policial) e desnecessária e inadequada para outro (juiz).
Depois, por razão de coerência e unidade do sistema processual, também é desejável que a prisão em flagrante, assim como a preventiva e a temporária, somente seja cabível quando outras medidas cautelares pessoais revelarem-se inadequadas ou insuficientes, como dispõe o art. 544, § 3º do PLS 156/09, devendo ser considerada, além de excepcional, medida subsidiária.
Além disso, de acordo com a consensual opinião doutrinária e jurisprudencial, a prisão preventiva é o parâmetro para as demais formas de prisão, de tal forma que somente será cabível outra modalidade prisional quando a preventiva também o for. Logo, como ficou claro no parágrafo anterior, se se aplica o princípio da subsidiariedade à principal modalidade de prisão provisória, que é a preventiva, também deve-se aplicar o mesmo princípio à prisão em flagrante, vez que esta representa "um pesado desequilíbrio na relação autoridade-liberdade e por isso deve ser analisado com sumo cuidado em um Estado Democrático de Direito como o nosso" (4).
Uma razão de ordem prática também reforça a posição aqui adotada, qual seja, a de que não existe diferença entre permanecer preso, por 24 horas, por exemplo, em flagrante ou preventivamente. As conseqüências para o cidadão cuja liberdade foi cerceada são as mesmas.
Por derradeiro, se o delegado de polícia, de acordo com o Projeto, pode deixar de formalizar a prisão em flagrante, em despacho fundamentado, quando vislumbrar alguma causa justificante, o que exige um juízo técnico, profundo e responsável, com mais razão pode ser-lhe facultada a possibilidade de aplicar outra medida cautelar pessoal, mais adequada que a prisão em flagrante, desde que o faça de forma fundamentada e comunique imediatamente ao juiz das garantias.
A segunda proposta de alteração no PLS 156/09 diz com a possibilidade de aplicação, à prisão em flagrante, pelos mesmos argumentos anteriores, bem como em atenção ao princípio da proporcionalidade, das hipóteses de não-cabimento da prisão preventiva (art. 545), da mesma forma como o foi para a prisão temporária (art. 551, § 1º). Ou seja, se não cabe a preventiva, parâmetro das prisões cautelares, também não caberá nenhuma
outra, tal como se houvesse uma acessoriedade desta em relação àquela. Nestes casos, a autoridade policial deverá, como regra (as exceções estão previstas no próprio art. 545), proceder à investigação do fato sem a formalização da prisão em flagrante, podendo aplicar outra medida cautelar pessoal mais adequada, ou representar ao juiz das garantias, para as devidas providências.

Conclusão

Diante do exposto, tem-se como positivas as mudanças introduzidas pelo PLS 156/09 relativamente à prisão em flagrante. Contudo, a colisão entre a eficácia da investigação criminal e a proteção das garantias e direitos fundamentais seria melhor resolvida se se aplicassem à prisão em flagrante os arts. 544 e 545 do Projeto, conforme aqui proposto.

NOTAS
(1) Por todos, cf. LOPES JR., Aury. A (in)existência de poder geral de cautela no processo penal. In: Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 08-09, out., 2009.
(2) Para maiores detalhes sobre o tema, ver MAYA, André Machado. O juiz das garantias no projeto de reforma do código de processo penal. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 17, n. 204, p. 06-07, nov., 2009.
(3) Ver, por todos, LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. v. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 82 e seq.
(4) LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 215.

(Boletim IBCCRIM nº 209 - abril de 2010)

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