sexta-feira, 2 de outubro de 2009



Os humanos têm olhos. Os répteis e muitos outros animais também. A questão, porém, parece ser que os humanos não sabem como os répteis enxergam. Sabemos, por outro lado, que lhes incrustamos a maça da não-visão, assim como o pai de Gregor Samsa fez quando “bombardeou” seu filho metamorfoseado (Franz Kafka). Bueno, os homens não apenas pensam que olham, mas acreditam que vêem; e isso implica, pelo menos, duas coisas muito marcantes: que, para além dos olhos, não atribuímos a possibilidade da visibilidade aos répteis, afinal de contas, nós é que somos dotados da Razão; mas isso está ligado à segunda implicação, segundo a qual, há algum sentido na auto-imputação da possibilidade de re-parar, isto é, existe uma responsabilidade por ter visão. Não é a toa que a cegueira dos personagens deve ser antecedida pelo aviso àqueles que podem enxergar: se podes olhar, vê; se podes ver, repara (José Saramago). Ainda assim o olho nos engana, visto que um irrelevante copo sem defeito o ilude, confundindo-se com o ar que não se vê (Guy de Maupassant) – cantarolando com Chico Buarque: um copo vazio, está cheio de ar. Quero dizer, há um delírio do olhar em querer ver, em querer conhecer, resolver, solucionar, na medida mesma em que pretende representar isso tudo como a mais pura e bela sanidade. Nessa complexidade toda há também o delírio da visão, que, assumindo-se enquanto tal, é mesmo uma crítica a racionalidade alucinatória e, por isso, outra realidade. Isto é, ser humano, faz toda a diferença; aliás, assumir a impossibilidade da neutralidade é a diferença, pois, se o mundo eu enxergo porque diferente de mim, a visão é o encontro mesmo com aquilo que não sou eu, numa imbricação pulsante e ruminante, senão reflexiva, com o outro que também me constitui e com os Outros, cujas realidades me chocam.

Conferir Maurice Marleau-Ponty, O Olho e o Espírito.

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