domingo, 18 de julho de 2010

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Todo sobre mi madre
(*por Adriano Silva)

Admiro minha mãe por se respeitar, por se assumir, por ser cada vez mais parecida com a pessoa que ela sempre desejou ser.
Eu admiro minha mãe por vários motivos. E tenho um orgulho crescente dela por várias razões. Nada disso, no entanto, tem a ver com as motivações que geralmente levam um filho a gostar de sua mãe.

Minha mãe, por exemplo, não cozinha bem. Lembro com carinho de um feijão que ela fazia, e que eu comia com colher de sopa numa cumbuca, bem como de uma torta nega maluca bem gostosa. Trata-se de relíquias arqueológicas do meu paladar – coisas que simplesmente não existem mais. Melhor assim. Acho que esses quitutes bissextos conservam melhor gosto se guardados para sempre no baú das minhas mais caras recordações gustativas. O fato é que minha mãe não gosta de cozinhar. A ponto de ter abolido o fogão e a geladeira em sua casa – usa um fogareiro de duas bocas, onde esquenta leite (ela adora café com leite) e um frigobar, permanentemente vazio (ou semihabitado por pés de alface e litros de leite longa vida). Ela não gosta de comer – e esse é um prazer fundamental para mim, uma alegria de viver que não compartilhamos. A relação que ela tem com comida, salvo raríssimas exceções (quibebe, quem diria, uma delas), é racional: ela se alimenta para fins de sobrevivência e ponto. Se pudesse se manter com uma pílula diária, provavelmente o faria.

Minha mãe e eu também não desfrutamos da mesma visão do que é um lar, do que deveria ser uma casa. A relação dela com o lugar onde mora é meramente funcional: a residência tem que ser a menor possível, para custar o mínimo e oferecer manutenção fácil, e deve ter apenas o espaço necessário para abarcar seus livros, e seus recortes de jornais e revistas, e todas as anotações que lhe escapam das páginas das publicações e cobrem seus papéis avulsos com manuscritos cheios de pontos de exclamação. Recentemente repassei a ela um notebook antigo, que ela vem utilizando como máquina de escrever. Seus pergaminhos, portanto, começaram a ser digitalizados. E ela está gostando de poder mexer nos textos sem ter que riscar, escrever por cima e puxar mil setas quando o espaço para refações realmente acaba. Mas a verdade é que ela adora papel, tem repulsa pelo mundo da tecnologia, da internet, dos bits. Ela gosta de ter uma relação intestina (termo dela), orgânica, visceral, física com a sua produção. Não gosta de máquinas nem de inteligências artificiais. Tudo o que é virtual não lhe apraz. É curioso ver uma integrante tão aguerrida de uma geração tão revolucionária finalmente cerrando fileiras do lado da reação, finalmente abandonando a vanguarda e indo defender os jeitos antigos de fazer as coisas. Em meados do século 21, minha mãe está mais ludita do que nunca.
Falando nisso, ela e eu também não dividimos mais a mesma barricada política há anos. Já passeamos juntos por plenárias, caminhadas, comícios, atos públicos. Aí um dia eu fui morar fora do Brasil e não demorou muito para eu começar a ver tudo diferente e me tornar um cara que acredita no modelo liberal anglo-saxão: Estado pequeno, governo como árbitro e não como jogador, sistema judicial ágil e imparcial para resolver os conflitos (o que significa, provavelmente, legislar mais a posteriori do que a priori, mais pela jurisdição e menos pela letra fria que é a tradição do direito romano que nos formou). Além de livre mercado baseado na competição e na meritocracia, menos impostos e mais liberdades (e responsabilidades) individuais etc. Minha mãe continua sonhando o sonho esquerdista da sua geração. Para ela, a exploração do trabalho pelo capital é indesculpável – o risco do empreendimento, a coragem sublime de tomar a iniciativa privada, que move o mundo e que pouca gente topa encarar, para ela não justifica de modo alguns os lucros do empreendedor sobre o trabalho de seus funcionários.

Para a minha mãe, os Estados Unidos são a nação mais desprezível da Terra e Cuba é um modelo formidável de organização econômica e política de uma sociedade – ela admira (com razão) os sistemas de saúde e educação universais e gratuitos de Cuba, simpatiza com o sistema de eleições sem candidatos de lá (curioso que não tenha a mesma simpatia pelos candidatos biônicos que havia no Brasil na época em que ela – com boa dose de razão – quase pegou em armas por aqui) e acha que tudo o que ocorre de ruim em Cuba advém de Washington e Miami. Minha mãe é quase uma anarquista, uma simpatizante ativa da desobediência civil, em sua conduta com cidadã aqui no Brasil. Ela adora a coisa gauche de Michael Moore. No entanto, não se opõe a coisas como a proibição de ir e vir em Cuba, as regulações estatais à vida dos cidadãos, a censura, a perseguição aos dissidentes e a práticas poucos sofisiticadas de debate como, por exemplo, o Paredão. É um pouco como se a luta anticapitalismo e a utopia comunista fossem valores mais fortes do que os direitos humanos e civis. Como se os fins (uma quimera ideológica acalentada de boa fé) justificassem os meios mais torpes. Como se, enfim, os pecados da direita virassem práticas plenamente justificáveis quando utilizadas pela esquerda.

Minha mãe morre de medo dos transgênicos (com alguma razão) e não acha ruim quando um Bové da vida destroi alguma plantação de soja de laboratório por aí. Ela também não se opõe a figuras como Hugo Chávez, Evo Morales e Ahmadinejad. (Mãe: o Irã vai matar a pedradas uma viúva que namorou outro homem depois da morte do marido. Por achar que isso é justíssimo e que conta com a bênção de Alá. O que esses caras vão fazer quando puderem atirar ogivas nucleares, ao invés de pedregulhos, sobre quem consideram, na sua visão medieval, talvez obnubilada pelo excesso de pêlo facial, ser as prostitutas do mundo? Chamo à lide o seu feminismo histórico, heroico, de primeira geração e de refinada cepa contra esse seu esquerdismo – ou mero antiamericanismo – empedernido, mãe!)

Bem, eu disse que tínhamos nos distanciado politicamente…

Mas disse também que admiro minha mãe. E é verdade. A admiro muito.

Admiro minha mãe por sua independência, por sua coragem de ser ela mesma – desde muito cedo na vida até hoje. Ela saiu de casa aos 17 para nunca mais voltar. Sem nada no bolso ou nas mãos. Rompendo com sua família, com seus amigos, com sua cidade, com seu passado, com muito do que ela era até ali. Decidiu não casar com um fazendeiro quando era tudo que uma menina como ela poderia querer. Foi lanterninha de cinema, morou em quarto de pensão, viveu a situação de só poder comer uma vez ao dia. Engravidou aos 19 e considerou interromper a gestação, quando isso era um tabu ainda maior do que é hoje. O que teria sido algo plenamente compreensível, dadas as circunstâncias. O que teria tornado a sua vida muito mais simples, escorreita, menos sofrida. (Claro que agradeço muito o fato de ela não ter tomado essa decisão! Assim como agradeço muitíssimo a quem a influenciou a resolver a questão de um modo que me permitiu existir…) Ela se divorciou aos 27, quando esse era outro tabu enorme no país. Minha mãe, a seu modo, foi Leila Diniz. E raspou o cabelo, usou black power, aboliu o sutiã (recentemente aboliu as calcinhas – está usando cuecas de algodão por serem mais confortáveis), desafiou os homens, os poderes instituídos por onde andou, as convenções. E leu Shere Hite, Coojornal, Pasquim, Liv Ullmann, Marina Colasanti, Marisa Raja Gabaglia, Fernando Gabeira, Alex Polari, Ferreira Gullar e mais um monte de gente. Ouviu muito Vandré e Mercedes Sosa. Mais tarde, suas paixões atuais chegaram e dominaram a cena em definitivo: Foucault, Deleuze, Guattari, Artaud, Spinoza. Minha mãe trocou de carreira com quase 40 e se se formou já quarentona, com um camisão multicor, quebrando o protocolo da circunspecta Reitoria, quando todo mundo no palco usava toga – e foi aplaudidíssima pela turma e por toda a plateia ao encerrar dizendo: “Peço desculpas a todos vocês por todas as vezes em que não fui suficientemente radical”. Eita frase boa. Eu estava lá, orgulhoso.

Admiro minha mãe por conviver tão bem com as suas excentricidades – quase todas elas citadas acima, menos a última: abolir a toalha de banho para se secar em toalha de rosto. Admiro minha mãe por assumir suas estranhezas, suas esquisitices, suas etezices. Por se respeitar cada vez mais. E por dar cada vez mais risada – inclusive de si mesma e de suas idiossincrasias divertidas. Por viver cada vez mais do seu jeito. Por ser cada vez mais parecida com quem ela de fato deseja ser. E, como consequência, por viver cada vez mais feliz, tranquila, realizada. É uma vencedora, no plano individual, em meio a uma geração que perdeu a queda de braço no plano coletivo. Deveria ter aprendido mais sobre isso com ela – da importância de respeitar o próprio estilo, de defender seus princípios e convicções, de se dar o tempo devido. Uma das radicalidades mais bacanas dela está na arte de montar a sua vida do jeito que melhor lhe apraz – e não abrir mão disso por (quase) nada.

Admiro minha mãe, por fim, pela avó que ela se tornou. Amorosa, paciente, atenciosa, disponível, generosa como talvez nunca tenha sido antes. Há sorrisos que brotaram em seu rosto com os netos. E uma maciez maior no toque que tem a idade dos meus filhos. Ela está sendo mãe agora, em certo sentido. E eu gosto de assistir sua maternidade acontecendo de modo mais pleno com meus pequenos. Funciona um pouco como um resgate, para mim. Ademais, quem faz bem aos nossos filhos faz bem à gente, não é assim? Mesmo que seja – por que não? - a nossa própria mãe.

(*retirado do blog Manual do Executivo Ingênuo.

2 comentários:

  1. Amiga, que bom dia que eu tive agora.

    Lindo texto! Lindo...meus olhos brilharam...

    Bjs no core, ótima semana.

    Mii

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  2. Pra vc tbém querida :)
    um bjo enorme

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