domingo, 4 de julho de 2010

Conversa de um bêbado com um diabo sóbrio


LAKHMÁTOV, EX-FUNCIONÁRIO DE INTENDÊNCIA e secretário de colegiado aposentado, estava à mesa em sua casa bebendo o 16° cálice e pensando na fraternidade, na igualdade e na liberdade. Súbito, de trás de uma lâmpada, olhou para ele o diabo... Mas não se assuste, leitor. Você sabe o que é o diabo? É um jovem de aparência agradável, de cara preta como botas, focinho e expressivos vermelhos olhos. Tem chifres na cabeça, embora nem seja casado. Usa penteado "a la Kapul".1 Tem o corpo coberto por uma lã verde e cheira a cachorro. Abaixo da espinha balança o rabo, que tem uma seta na ponta... Em vez de dedos tem unhas, em vez de pés, cascos de cavalo. Lakhmátov ficou meio confuso ao ver o diabo, mas logo se acalmou quando se lembrou de que diabos verdes têm o tolo hábito de aparecer a todos aqueles que tomaram um trago.
- Com quem tenho a honra de falar? - perguntou ao intruso.
O diabo ficou confuso e baixou os olhinhos.
- Não fique acanhado - continuou Lakhmátov. - Chegue-se mais perto... Sou um homem sem preconceitos, o senhor pode ser sincero comigo... Fale como amigo... Quem é o senhor?
O diabo chegou-se indeciso a Lakhmátov e, encolhendo o rabo, fez uma reverência cortês.
- Sou o diabo, ou capeta... - apresentou-se. - Sou funcionário de missões especiais junto à pessoa de Sua Excelência Satanás, diretor da chancelaria do inferno.
- Ouvi falar, ouvi falar. Muito prazer. Sente-se! Não aceitaria uma vodca? Estou muito contente... E o que o senhor faz?
O diabo ficou ainda mais confuso...
- Propriamente falando, não tenho ocupação definida... - respondeu ele pigarreando embaraçado e assuando o nariz na folha de um "Rébus".2 - Antes nós tínhamos ocupação efetiva. Tentávamos as pessoas... desviávamos do caminho do bem para as sendas do mal... Hoje em dia essa ocupação, "entre nous soit dit",3 não vale uma cusparada. E, além disso, as pessoas ficaram mais espertas do que nós. Procure você tentar um homem que já aprendeu todas as ciências na universidade, estudou o fogo, a água e os tubos de cobre! Como posso ensiná-lo a roubar um rublo se, sem minha colaboração, você já afanou milhares?
- É verdade... Mas, não obstante, você tem alguma ocupação, não?
- Sim... Hoje nossa antiga função pode ser apenas nominal, mas mesmo assim temos trabalho... Tentamos damas de classe, impelimos os rapazinhos para a poesia, levamos comerciantes bêbados a quebrarem espelhos. Já em política, em literatura e em ciências não nos metemos há muito tempo... Nesse campo não entendemos patavina. Muitos de nós são colaboradores de "Rébus", há até aqueles que largaram o inferno e se tornaram gente... Esses diabos reformados, que se tornaram gente, casaram-se com comerciantes ricas e hoje levam uma vida ótima. Uns se dedicam à advocacia, outros editam jornais, são pessoas muito ativas e respeitadas!
- Desculpe a indiscrição: quais são os seus vencimentos?
- Nossa situação continua a mesma... - respondeu o diabo. - O quadro de funcionários efetivos não mudou... Continuamos tendo casa, luz e calefação por conta do erário... Vencimentos não recebemos, pois todos somos extranumerários e porque ser diabo é uma função respeitável.... Para ser franco, em linhas gerais se vive mal, ainda que a gente peça esmolas... Somos gratos aos homens; eles nos ensinaram a aceitar propina, senão já teríamos esticado as canelas há muito tempo... E assim vamos vivendo de rendas... A gente fornece provisões aos pecadores e aí... mete a mão... Satanás envelheceu, está sempre saindo para contemplar a Zucci,4 não liga mais para prestação de contas...
Lakhmátov serviu um cálice de vodca ao diabo. Ele o bebeu e soltou a língua. Contou todos os segredos do inferno, abriu a alma, desabafou, e agradou tanto a Lakhmátov que este o manteve em sua casa para pernoitar. O diabo dormiu no forno e passou a noite inteira delirando. Ao amanhecer escafedeu-se.

Notas do tradutor
1. Penteado usado na Rússia no século 19, que deixava as madeixas caindo sobre a testa. A expressão se deve a Joseph Kapul, tenor francês que cantou na Ópera de São Petersburgo na época de Tchekhov e foi um criador de moda entre os russos.
2. Revista espiritualista publicada em São Petersburgo na época de Tchekhov.
3. "Cá entre nós", em francês.
4. Trata-se da bailarina italiana Virginia Zucci (1849-1930). Zucci chegou a São Petersburgo em 1885, atuou em balés de Marios Petipa, nome fundamental na história do balé clássico russo, tornou-se muito popular e, entre 1885 e 1888, integrou o corpo de balé do Teatro Mariinski de São Petersburgo, dançando também em Moscou e Odessa.

(ANTON TCHEKHOV - tradução PAULO BEZERRA - Folha do Estado de São Paulo, 04/07/2010)

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